cor, de barro e éter - escultura e poética

  • De 30/04/2021 a 15/06/2021

A exposição cor, de barro e éter - escultura e poética é composta de esculturas de cerâmicas e textos poéticos, de autoria da artista Rosa Luna, cuja linguagem é unificada a partir de uma forma simbólico-metafórica universal: o coração humano.

De um contexto psicológica e fisicamente impactante, imediatamente presente ao ato criativo, resulta esta obra, em que a artista Rosa Luna partilha questões existenciais e emocionais que, assim como ao mundo inteiro, também a acometeram, durante o isolamento social, imposto quando da “primeira onda” do surto da Covid 19, em Alagoas.

Objeto-símbolo e pandemia parecem se originar da mesma raiz etimológica: cor, de coração, cor de coronavírus. Contudo, em latim coração é cor ou cordis e corona significa coroa. O título da exposição Cor, de barro e éter se refere ao design orgânico da escultura e à matéria da sua composição: a argila. A terra como elemento e metáfora da condição física e material da pessoa, e o elemento éter, a quinta essência filosófica, referindo-se a sua condição espiritual. Sendo as formas de vida, e morte, forjadas na escultura em cerâmica pelo conjunto de elementos que incluem a água e fogo.

 A maioria dos títulos das peças são variações da palavra coração, como cor, de coragem ou flor de cordis. Outros remetem aos locais de pertencimento, emergidos nas reflexões do isolamento, imagens recorrentes à artista no ressignificado da existência, como almar.

 

cor, de barro e éter - escultura e poética

Rosa Luna, migrante-filha pródiga sertaneja... poeta, ceramista, artista, artesã, jornalista, que importa?!: à flor da pele, a alma, a palavra e o barro importam... A voz é fêmea, é minha e é delas: das mulheres que me pariram à terra afogueada do Sertão e alagoada nas beiradas por mar e lagunas. De herança, a resiliência de resistência, aquela em que o medo e a dor sucumbem à vida, porque a vida é um sempre que, se volatizar, vira água de encher pote. O pote é coração, tem carne de barro:Cor-de barro e éter,  e alegoriza o espanto, os sarcoves, o terror, o drama, a indiferença que mata. Essas malignidades o pote-coração decanta e filtra. À tona, nele, fica só o bem e o bom de beber: a compaixão, a coragem, a luta, o pertencimento, ancestralidade, a renovação, a revivência, a reverência, a oração, o futuro, a transitoriedade, a esperança, o amor, essas forças de que são, realmente, feitas as gentes, como eu e você.

cor, de coragem

(escultura) e (poemeo)

queda, quebrada, costurada, colapsada

dor quando lancina é tanto que emuda.

alienada, demente, ausente,

intuo que as mães silenciadas no corpo escutam...

fazem tudo... com o órgão que resta: o coração

seu olhar me transparencia e eu fico sem corpo

e sem corpo eu não movo sua existência, sequer sua maternidade...

física, é intocável centro empacotado de tecido esterilizado de algodão,

sobre uma estrutura de ferro dobrável,

dentro de uma caixa de concreto branco,

em cujas paredes aparelhos emitem leituras sonoras metálicas

dos sinais vitais de suas entranhas,

a ela se ligam veias de plástico

de antibiótico, soro, vitaminas, carboidratos, proteínas,

sais minerais, estabilizantes, soníferos, analgésicos...

 a assepsia alcoólica e hospitalar... nos salva?,

entre nós, passamos,

como estranhos fantasmas mascarados, pelo caminho, pelos olhares, pelos dias.

de ala em ala, por todos os lados, os sarcoves livres nos perseguem e aprisionam.

eu não tenho espaço emocional pra eles. amém.

entro no seu transe: só nossos corações, em algum instante aqui, fora daqui,

bombeando sangue, bombeando sangue, bombeando sangue, bombeando sangue

Mãe, emerge!

eu sou agora a sua mãe.

cor: coração, em latim; em francês é cour, de onde deriva courage que, em português é coragem

pêndulo

 (escultura) e  (poemeo)

sol dependurado na Manguaba

a barca,

idas e vindas,

partiu

sagrados

(escultura) e (poemeo)

Ô, Onisciência

Ô, Onipotência

Ô, Onipresença

ficaram sagrados corações

 subiu a imatéria, como na ascension de anish kapoor*

Ô, reverentes,

contemplando o holocausto

dos que nos são caros

o império do terror tem fome mede forças tem poder

o amor ama sofre teme protege e ora, é seu poder

jaza aqui seus

10% de silêncio.

* ascension, de anish kapoor: escultura do artista judeu indiano. ANISH KAPOOR 'Ascension' - YouTube

ina

(escultura) e (poemeo)

naqueles dias 

João* falou:

inã...

ina!

ina.

aludiu...

afirmou!

concluiu.

era tudo que precisa ser dito.

concordei

*neto,9m

Inimã -

(escultura) e (poemeo)

como afrescos,

de barro e éter,

os corações das gentes

jazem em nós mesmos.

onde amamos, onde amados

onde desamamos, onde invisibilizados.

estatísticos ou não,

casulos sobrevividos, sequelados.

nos espero uns com os outros

de algum modo inventado

quero-nos vida de tantas vidas possíveis...

morremos de tantas mortes...

profundamente...

muitos, de fato,

coroados na carne

spes - (escultura pessoal)

(escultura) e (poemeo)

confiar é sperare:

do latim brisa

o gozo leve de

 esperança

no coração

fulô de cordis

(escultura) e (poemeo)

a bença, Noêmia, Tereza, Simodéia (em memória)

na cabeça-de-frade, broto flor do cardo,

esperança e renovo,

pra reconstruir-me um Sartãao

que, não visto do antigo mar invadido,

dele restou o latim.

caminho de caatingas e lajedos ancestrais,

flui em mim a correnteza fantasma

entre as pedras do Riacho Gravatá,

que alimentou o Ipanema ,

mas não lava mais os pés

da serra que elas sustentam.

isolada dos outros,

as falas da Terra mais me repovoam,

venho de suas memórias:

no casarão do baixio, a bisavó na moldura redonda: Mentonha...

perdeu meu biso zépurcino pro bando de lampião em Ouro Branco.

em seu exílio, frutificou a Gurgi de Santana do Ipanema e o seu coração com paizéaraujo.

era tradição: deu a cada uma da prole um pé de manga. cheguei tarde.

vó Zunga partiu, mas antes aqui gerou seus primeiros frutos

encantada na sanfona do meu vô zéleandro.

mãe Lucimar me deu de batismo pra Dona Laura, a mulher dele.

lição de ajuntar como da gente as gentes que nasceram do coração.

olhando as estrelas e as macambiras,

no Pedrão, onde luz o pico da montanha,

à beira da nascente Braúna,

à vista de Águas Belas, Quixabeira e Dois Riachos,

nasci, de parteira.

segundo o costume,

soltaram fogos

ammã *

(escultura) e (poemeo)

era uma vez um Farol

que tinha Pinheiro

que um dia teve Acácias Reais,

com flores e

botões ouro-amarelos

o Jardim era nosso,

como era meu e das filhas:

lá nos plantamos família fêmea

com poucas mobílias, tanta

poesia e contos infantis de terror

lá eu meditei o Om

lá, entendemos o drama da Páscoa

e elas foram livres pela primeira vez

inventamos amor e sonhamos

mas, debaixo dos nossos pés,

cavava-se fins e vinténs

o sal da terra que havia lá não sabia de nós

a escavadeira sabia

ninguém sabia que o horror

seria coroado duas vezes

sangrava nossas história no solo

sangrava nossas artérias no corpo

* ammã: expressão infantil para mãe de origem proto-indo-européia, Uma teoria não comprovada diz ser de onde se origina a palavra latina amor, cujo sentimento é concretizado num símbolo universal: o coração.

mangue

(escultura) e (poemeo)

onde acaba o sertão, onde começa o mar

onde acaba o mar, onde começa o sertão

entremarés e entreterras,

o que é oceano

há de antes ser mangue

o que é continente,

há de também ser mangue,

esse útero do mundo,

esses braços pendentes, ancorando o tronco

apaziguando o agitado do mar ao seu próprio lugar

que nos seja dada a força da sua cura:

como das paneleiras* o esbater

dos taninos* no coração de barro

o mangue é uma poeta que

se eleva das raízes pra ter alma verde:

se elevando é preto, é branco, é vermelho...

suspenso pra respirar,

oxigena, no ar, colhe carbono

a partir dele, vida nova

através dele, caminho e alimento

além dele, onde terra, onde mar,

onde em mim.

*tanino: extraído da casca do mangue, confere resistência à cerâmica (técnica das paneleiras capixabas)

almar

(escultura) e (poemeo)

de arrecifes e algas, alagôo

ao continente esse corpo de pertencimento              

imerso à nordeste em mim de pijama e tênis

desvesti minhas águas, neste mar manhã

nudez de azul aberto entrego, integro 

e sou lisos filos verdes e marrons sorvendo luz

e sou asperezas de negrinhas conchinhas que me escamam

é preciso sofrer do sol outras alegrias,

sou una coletivo de coral,

salgada pedra, alimento, quarando, purificando

sou o que ficou do véu de areia, soprada a sílica e o sal

mareio pra dentro, afluo pra fora

e de novo e de novo e de novo e assim pulsando...

da sizígia terra-luacheianova-sol

maré morta

maré viva